A aprovação do Decreto-Lei nº 36/2025 provocou um abalo visível no mercado da cidadania italiana, especialmente no Brasil, onde mais de 30 milhões de pessoas se reconhecem como descendentes de italianos. Em meio ao ruído gerado pelas mudanças, poucos têm se debruçado sobre o que realmente está em jogo. A nova norma não representa apenas uma restrição, ela simboliza uma reorganização profunda e necessária.
Com a extinção prática da via administrativa e a paralisação das filas nos consulados, o processo de reconhecimento da cidadania italiana passa agora a depender exclusivamente do Judiciário do país. Isso, por si só, elimina práticas frágeis, como protocolos improvisados em comunes, e eleva o patamar de exigência: é preciso base constitucional, tese jurídica consistente e atuação efetiva nos tribunais italianos. O que muitos veem como o fim de um caminho é, na verdade, o início de um novo ciclo, mais sério, mais fundamentado e, acima de tudo, mais estratégico.
Durante anos, a cidadania italiana foi tratada por muitos como um serviço informal. Bastava reunir os documentos e “protocolar” em algum comune disposto a aceitar. Com a exigência da via judicial, esse modelo perde a validade. O processo agora demanda estrutura jurídica qualificada. Não basta um consultor: é necessário um time com formação legal, domínio do direito constitucional e vivência real no sistema de Justiça da Itália. A consequência imediata foi o colapso de escritórios informais e consultorias sem presença jurídica efetiva no território italiano. O que se vê nas redes sociais — o medo, a desinformação, os “cancelamentos” — é apenas o eco da desestruturação de um modelo ultrapassado.
O que pouco se comenta, porém, é o outro lado dessa mudança: a oportunidade. Ao centralizar os processos na Justiça, o decreto eliminou intermediários e reforçou o valor de estruturas sólidas, com tese própria, histórico de decisões favoráveis e presença internacional. O descendente ítalo-brasileiro, mais do que nunca, precisa escolher com quem caminhar. Não com base em preço ou promessa de passaporte fácil, mas a partir de critérios como consistência jurídica, reputação comprovada e visão de futuro.
Paralelamente à discussão sobre filas, cartórios e impactos no mercado imobiliário, há uma realidade relevante sendo ignorada: a Itália vive uma crise histórica de mão de obra. Setores como transporte, construção civil, hotelaria, saúde e tecnologia enfrentam escassez de profissionais. Em resposta, o próprio governo italiano criou um visto de trabalho exclusivo para descendentes, que reconhece o vínculo sanguíneo como critério legítimo de integração. Esse visto permite que o ingresso legal no país aconteça em paralelo ao processo de reconhecimento da cidadania.
Ou seja, a ponte entre Brasil e Itália está formada. O que falta, agora, é organização. Enquanto se aguardam articulações diplomáticas ou políticas públicas mais modernas, o setor privado começa a se mover. Grandes empresas, inclusive multinacionais, passaram a buscar estruturas jurídicas com base na Itália e conexão direta com o Brasil, capazes de identificar descendentes com preparo, documentação regularizada e real disposição para migrar.
Essa movimentação revela uma resposta prática, entre privados, à ausência de políticas públicas adequadas. A cidadania italiana não acabou. O que acabou foi o improviso. O que se inicia agora é uma nova etapa mais legal, mais transparente e mais próxima daquilo que a cidadania realmente representa: identidade, pertencimento e a oportunidade concreta de construir um futuro na Europa.
Welliton Girotto é especialista em cidadania ítalo-brasileira, fundador da Master Cidadania, estrutura jurídica com atuação nos tribunais da Itália e mais de 20 anos de experiência no reconhecimento de cidadania por descendência.